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Design do tempo: em busca do presente no presente

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* texto originalmente publicado na edição #53 da Revista abcDesignImagens de Eugene Ivánov.

Poderia nosso passado tornar-se diferente da recordação que temos dele? Não no sentido de “viagem no tempo”, pois o que aconteceu, é claro, está encerrado no passado. Mas se muito do que vivemos não é necessariamente lembrado, então muito do que recordamos pode não ter acontecido tal como acreditamos. A experiência do presente, afinal, interfere na compreensão de tudo que já nos aconteceu e que ainda pode nos acontecer.

Donde decorre a questão: o que esperamos do futuro? Ou ainda: é possível projetar um futuro? Ora, a literatura distópica esboça um futuro a ser evitado. Por sua vez, “projetar” implica pensar no futuro a partir do presente, no intuito de precaver, corrigir e melhorar o que agora se considera problemático. Em outros termos, o presente orientado ao futuro é aquele que não é totalmente aceito, como se restasse uma alternativa ao que “deu errado”.

Diferente é jogar com os dados que se tem, sabendo que a única condição de todo instante é a de ser irremediavelmente perdido. O tempo passa e não cessa de passar. Tudo que é vivo está para morrer. A um só tempo, é no intervalo do agora que se vive o que já foi e o que virá.

Tal adesão ao presente aparece com vigor na célebre obra Em busca do tempo perdido, de Marcel Proust. O extenso relato (em sete volumes!) das relações que o narrador estabelece com sua própria história é pautado por dois focos principais: o “tempo perdido” e o “tempo redescoberto”. De um lado, o movimento incessante do tempo que se perde constitui a experiência do presente. De outro, esse mesmo movimento acaba por revelar aspectos diferentes, portanto “redescobertos”, daquele tempo considerado perdido.

A narrativa se desenrola como se pudéssemos acompanhar as lentes de um fotógrafo em constante deslocamento, capturando cores diferentes de uma mesma cena. Assim, revisitar um lugar do passado, rever uma mesma pessoa ou ouvir novamente uma música são experiências cujos aspectos nunca coincidem plenamente, por mais que a memória permita o reconhecimento. Com efeito, ao invés de pensar no tempo em termos de sucessão linear, somos conduzidos a compreender o tempo como duração descontínua, feita de instantes cujo encadeamento é permeado de lacunas e ritmos diferentes.

Da “busca” impossível por um tempo perdido, então, Proust faz derivar a possibilidade de nos reinserirmos no presente por meio de um novo ponto de vista. Trata-se de “tornar-se o que se é” nos termos de Nietzsche, pois o que somos sempre está para ser inventado, na dificuldade mesma de não poder ser outra coisa. Quer dizer, o que se “redescobre” é o pensamento que retorna para dizer algo diferente, retomando uma história que não se pode mudar, retocar ou substituir e que nem por isso se deixa fixar em um único sentido.

Eis a busca do presente no presente: podemos redescobrir em tudo que vivemos uma grande parcela não vivida, desconhecida, coisas que aconteceram como se não tivessem acontecido. Tempo redescoberto, ou “design do tempo”, é esta reversibilidade de um tempo irreversível – não contra o tempo ou sem pensar no tempo, mas revivendo o tempo. Afinal, se o que aconteceu veio a acontecer da mesma forma que poderia não ter vindo, não há um caminho “certo” a ser tomado, nenhum futuro a ser projetado. Há somente um intervalo a ser vivido.


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